A venda direta para o consumidor final de leite cru ou de algum derivado lácteo produzido com leite cru é terminantemente proibido no Brasil desde a década de 1970. No entanto, dois fatores contribuem para a necessidade de abordar esse tema visando esclarecer o consumidor final dos potenciais riscos associados.
O primeiro fator é que uma parcela significativa do leite produzido é comercializada via mercado informal, o que indica que os consumidores não têm garantias de inocuidade destes alimentos. O segundo fator é a tendência de um grupo de consumidores que são sensíveis ao apelo do consumo de alimentos naturais, sem nenhum tipo de processamento industrial e com compra direta do produtor. Em ambos os casos, muitos destes consumidores são desinformados sobre os riscos do consumo de leite cru.
Considerando a importância do assunto, disponibilizamos a tradução na íntegra de um documento recentemente publicado pelo Conselho Nacional de Mastite dos EUA (NMC), que aborda os riscos do consumo do leite cru.
"O crescimento atual da demanda pelo consumo de leite cru reflete um mercado em constante expansão dentro de um cenário de produção local, natural e de alimentos não transformados. Para atender a essa demanda crescente, os produtores de leite estão se tornando mais envolvidos na venda e/ou distribuição do leite cru. O leite cru é o leite de vacas, ovelhas, cabras e outros animais, que não tenha sido pasteurizado.
A pasteurização do leite cru foi introduzida há vários anos para evitar a propagação de doenças zoonóticas transmitidas pelo leite, especialmente a tuberculose e brucelose. As qualidades nutricionais, o melhor sabor e os benefícios para a saúde têm sido defendidos como razões para consumir o leite cru. No entanto, há uma falta de dados com base científica para substanciar essas afirmações. Por outro lado, diversos riscos à saúde têm sido associados com o consumo de leite cru.
Um grande número de focos da doença foi notificado em pessoas após o consumo do leite cru. Por exemplo, 12 surtos documentados associados ao consumo de leite cru ocorreram nos EUA entre 2000 e 2008. A partir desses surtos, 435 pessoas foram diagnosticadas com infecções bacterianas transmitidas pelo consumo de produtos lácteos crus, com mais de 60 pessoas hospitalizadas e cinco mortes, incluindo natimortos devido à listeriose.
Durante este mesmo período, havia apenas dois surtos documentados associados com o consumo de produtos lácteos pasteurizados: um deles envolvia Listeria monocytogenes, e o outro, Salmonella typhimurium. A contaminação pós-pasteurização foi implicado em ambos os focos, embora o modo específico de contaminação não foi identificado.
Apesar de numerosos estudos demonstrarem que os riscos associados ao consumo de leite cru, muitas pessoas continuam a consumir leite cru. Baseado em histórico de doenças recentes associadas ao consumo de leite cru, de várias organizações, agência e associações incluindo U. S. Food and Drug Administration, U. S. Centers for Disease Control and Prevention, American Medical Association, American Academy of Pediatrics, American Public Health Association, American Veterinary Medical Association, U. S. Animal Health Association, U. S. Department of Agriculture, National Environmental Health Association, International Association for Food Protection, Health Canada, European Food Safety Authority, Food Standards Australia New Zealand, e a Organização Mundial da Saúde (OMS), todos têm declarações formais sobre os riscos associados com consumo de leite cru e defendem o consumo do leite pasteurizado.
Nos EUA, é uma violação da lei federal vender o leite cru para uso doméstico entre estados, sendo a venda intraestadual de leite cru ilegal em cerca de 20 estados. Entre os estados que permitem o comércio interestadual de leite cru destinado ao consumo humano, os regulamentos e as normas variam consideravelmente. Em alguns países como o Canadá, o leite cru não pode ser vendido.
Quando o leite cru é vendido legalmente, são necessárias estratégias para reduzir riscos à saúde humana, padrões mínimos adequados de regulação devem ser criados para assegurar que a rotulagem, higiene durante a ordenha e os níveis de contaminação microbiana sejam efetivamente monitorados e mantidos. A educação dos consumidores para alertar os riscos potenciais transmissão de doenças de origem alimentar pelo leite cru (e outros produtos lácteos) também é necessária.
Os regulamentos que exigem que os produtos lácteos não pasteurizados atendam as normas específicas de higiene e padrões microbiológicos têm funcionado efetivamente em outros países. O desenvolvimento de padrões microbiológicos para o leite cru parece ter mérito, mas exigem métodos que podem detectar uma variedade de patógenos diferentes e provavelmente teria um custo proibitivo. Além disso, os testes para o leite cru não podem ser usados como uma alternativa eficaz à pasteurização, uma vez que a incapacidade de um método para detectar um patógeno não indica sua ausência.
A exigência de advertências de saúde a ser adicionado visivelmente nos rótulos do leite cru pode ser um mecanismo útil para alertar os consumidores dos riscos inerentes ao seu consumo. Em alguns estados dos EUA há a exigência de rotulagem de advertência. No entanto, programas intensivos de educação são necessários para assegurar que as populações vulneráveis (idosos, gestantes, pessoas imunodeprimidas e as crianças) compreendam verdadeiramente os riscos que estão associados ao consumo destes produtos. Do ponto de vista da redução dos riscos ao nível da fazenda, o desenvolvimento de medidas de controle pré e pós-ordenha para minimizar a contaminação fecal do leite são fundamentais para o controle de patógenos.
Alguns agentes patogênicos alimentares dos seres humanos são endêmicos e comensais no gado leiteiro, sendo que os esforços de investigação de fatores de risco dentro da produção primária relacionada com a contaminação do leite cru são necessários. É provável que a contaminação bacteriana possa ser reduzida melhorando a higiene durante a ordenha, embora a eliminação completa destes riscos não seja factível.
De primordial importância é a necessidade de fornecer programas educativos e materiais visando aumentar a consciência dos riscos de contaminação microbiana para os produtores de leite, os funcionários de laticínios e consumidores.
Os produtores de leite que fornecem leite cru devem ser bem informados dos riscos e responsabilidades associadas com a venda de leite cru, assim como as empresas e seguradoras envolvidas na atividade. O aumento dos esforços educativos junto aos consumidores é essencial para protegê-los contra os riscos potenciais associados com o consumo de leite cru. Os esforços para educar e informar os políticos, reguladores e legisladores também são necessários para que as legislações sejam adequadas e os padrões microbiológicos do leite cru a ser vendidos para consumo humano possam ser estabelecidos.
O NMC (Nacional Mastitis Council dos EUA), juntamente com várias outras organizações de saúde pública, agências e associações recomendam o consumo de leite pasteurizado e desestimulam a venda e o consumo de leite cru. Nos estados (dentro dos EUA) onde o leite cru é vendido legalmente, o NMC estimula estratégias para reduzir riscos à saúde humana que são inerentes ao consumo destes produtos.
Tais estratégias incluem a elaboração de regulamentos de uniformes e normas de segurança, e a educação dos consumidores e produtores sobre a produção, venda e consumo de leite cru. Os programas educacionais são necessários para assegurar que as populações vulneráveis (idosos, gestantes, pessoas imunodeprimidas e as crianças) compreendam verdadeiramente os riscos que estão associados ao consumo destes produtos.
Embora estes esforços possam ser capazes de reduzir os riscos associados ao consumo de leite cru, a única forma segura de evitar doenças de origem alimentar associada ao leite cru é o consumo de leite que foi pasteurizado."
Fonte: tradução livre de Marcos Veiga dos Santos. A íntegra do texto (em inglês) está disponível aqui.
Autor:
Marcos Veiga dos Santos
D.Sc., professor da FMVZ/USP
Fonte: Marcos Veiga dos Santos